domingo, 13 de novembro de 2011

0 Conto: Artur e os múltiplos de três, do livro "O Homem do País Azul" de Manuel Alegre


CONTO: ARTUR E OS MÚLTIPLOS DE TRÊS


      Gostava do número três e dos seus múltiplos. Com eles tinha construído um sistema com que exorcizava as forças malignas e atraía sobre si a protecção das forças benfazejas. Era um sistema secreto, complicado, que sempre se revelara eficaz. A tal ponto que não conseguiria viver sem ele. De certo modo, o número três e os seus múltiplos tinham-se tornado a trave mestra da sua vida. Ninguém dava por isso, mas não havia gesto ou acto seu que não fosse precedido do ritual baseado no número três e nos seus múltiplos. Por exemplo: não atravessava um corredor sem olhar três vezes para cada um dos ângulos superiores, nem se sentava a uma mesa sem tocar três vezes com o indicador da mão direita numa das esquinas, ou, no caso de a mesa ser redonda, na esquina superior direita das costas da cadeira. Em certos dias especialmente intensos, não bastava olhar ou tocar três vezes, mas sim nove e, em momentos excepcionais, vinte e sete.
     Também não conseguia adormecer sem apagar e acender a luz três ou várias vezes vezes três, ao mesmo tempo que deveria fixar o ângulo superior direito do quarto igual número de vezes, consoante a apreciação que fazia da relação de forças em volta da sua vida.
     Por vezes era um pouco fatigante e mesmo embaraçoso, mas não conseguia viver sem a permanente invocação do número três e dos seus múltiplos. Tinha a certeza absoluta de que, se alguma vez ousasse transgredir, as forças antagónicas se desencadeariam contra ele, trazendo consigo a derrota, a catástrofe ou mesmo a morte.
     Nem pensar em começar o que quer que fosse sem primeiro dizer, três vezes para si mesmo, escandindo os números de três em três: um dois três, quatro cinco seis, sete oito nove, um dois três, quatro cinco seis, sete oito nove, um dois três, quatro cinco seis, sete oito nove.
     Não era bem um exorcismo, era quase uma reza, uma liturgia para uso próprio, alicerçada numa relação matemática com o mundo e os seus equilíbrios precários. Se outros se benzem antes das refeições, por que não haveria ele de tocar três ou várias vezes três na esquina da mesa ou no canto superior direito das costas da cadeira?
     Às vezes, já o disse, o sistema era embaraçoso, mas nem por isso deixava de funcionar. Assim, por exemplo, no amor. Artur tinha adquirido uma tal destreza que era capaz de tocar três vezes ou várias vezes três direito do clítoris, sem que a sua parceira reparasse que estava a ser dedilhada segundo uma regra baseada no número três e seus múltiplos. E nunca nenhuma mulher tinha notado que, depois de ejacular, ele se espremia sempre três vezes. Era um sistema que não admitia a mínima excepção.
     De modo que a vida de Artur estava construída em torno dos três e de seus múltiplos. A mais pequena falha provocaria inevitavelmente um desmoronamento.
     Aquela prática constante de uma liturgia ininterrupta dava-lhe a confiança necessária para enfrentar as forças adversas. Havia dias em que uma sábia conjugação do três e seus múltiplos o fazia sentir-se em perfeita sintonia com o misterioso equilíbrio dos astros, dos seres e das coisas. Então era uma festa, dir-se-ia que o três cantava dentro dele a canção da harmonia universal. Eram dias para o amor, para a luta e para a glória, esses dias em que Artur sentia dentro de si o fluxo das forças benfazejas propiciado pelo seu sistema de três e múltiplos de três.
    Por vezes Artur sentia-se frágil: era quando temia que o seu sistema pudesse desarticular-se subitamente. Tornava-se particularmente vulnerável quando estava doente. Certa vez julgou que enlouquecia: durante um acesso de febre viu o três desintegrar-se. Era algo semelhante ao estilhaçamento de um planeta. A morte deve ser assim, pensou, já depois de a febre ter baixado.
      Na verdade tinha sido muito mais insuportável do que a visão da morte. Há uma ideia da morte que não põe em causa a ordem em que tudo se funda. Pode pensar-se na morte ou antevê-la sem a irreparável sensação de ter perdido o equilíbrio. Não assim durante o breve instante em que, no seu delírio, Artur viu o três desintegrar-se. Então tudo se desmoronou, inclusivamente a própria ideia da morte. Felizmente que tudo se passou em plena febre, de modo que em Artur ficou apenas a memória confusa de uma lâmpada a partir-se na sua cabeça.
     Tanto bastou, porém, para que se acentuasse o temor de uma eventual e súbita desagregação do seu sistema. De aí em diante, Artur redobrou de cuidado na conjugação do três e de seus múltiplos. Já não lhe chegava repetir interiormente, apenas três vezes, um dois três, quatro cinco seis, sete oito nove. Passou a fazê-lo nove vezes e, até com alguma frequência, vinte e sete.
     Talvez a circunstância de ter sido mobilizado para Angola e colocado na zona mais perigosa, precisamente em Zala, o tenha levado a precaver-se contra a precariedade de tudo, incluindo o seu sistema. Fosse por que fosse, o certo é que foi aperfeiçoando e reforçando cada vez mais as difíceis combinações do três e dos seus múltiplos.
    Não admira, por isso, que tivesse ficado profundamente perturbado ao descobrir, já em plena picada, que se tinha esquecido de olhar três vezes para a ponta superior direita da bandeira hasteada no aquartelamento, como sempre fazia quando saía para operações. Sentiu-se então completamente desprotegido. De nada lhe valeu repetir incessantemente um dois três, quatro cinco seis, sete oito nove ou multiplicar infinitamente por três os toques na mira da espingarda e na esquina do banco do unimogue. Artur teve o pressentimento de que o seu sistema e a sua própria vida tinham entrado num irreversível processo de desarticulação. Tentou algumas combinações mais subtis.
    Mas quando a coluna estacou subitamente e os primeiros tiros soaram na picada, compreendeu que era inútil esforçar-se mais. E nem sequer murmurou um dois três, quatro cinco seis, sete oito nove, antes de saltar. Deixou-se cair como quem se resigna. Rastejou até uma pequena dobra de terreno, sempre sem utilizar qualquer combinação do três e dos seus múltiplos. Quando a rajada o cortou pela cintura, já ele fora atingido pela conjugação adversa das forças malignas que tinham desintegrado o seu sistema.
    Teve ainda tempo de contar as feridas: eram três. Então sorriu e, enquanto com o indicador direito tocava três vezes três no rebordo superior direito da ferida aberta no flanco direito, murmurou uma última vez para si mesmo: um dois três, quatro cinco seis, sete oito nove.


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